Blogue para a comunidade da aldeia do Castelo, concelho de Mação

A LENDA DA BURACA DA MOURA OU DE SERPE



No Bando dos Santos, a 600 m de altitude, na base de um afloramento rochoso que vai na direcção norte, encontra-se uma gruta cuja galeria foi obstruída por pastores, de forma a evitar que o gado caísse para um espaço interior onde ressoa o ruído duma queda de água num rio ou lagoa subterrâneos.
A tradição popular ainda bem presente na aldeia do Castelo tem-na como habitada desde o “princípio do mundo”, que lhe associou mouras encantadas, tesouros escondidos ou maldições de toda a ordem, o que tem alguma razão de ser, pois em estudo arqueológico feito aos poucos metros desobstruídos da galeria de acesso, foi encontrada uma lasca de quartzito trabalhada, classificada como Moustierense do Paleolítico Médio, que poderemos datar de cerca de 30.000 anos antes de Cristo.

O mito da moura encantada, associado a esta gruta, obedece a um protótipo que é comum a outras regiões, em especial no interior centro e norte de Portugal. Um génio feminino reside “encantado” numa gruta onde guarda um tesouro. Aparece com aspecto sedutor aos passantes, normalmente a um pastor ainda rapaz, penteando-se com um pente de ouro o que deixa antever o seu grande tesouro. Convida o jovem a voltar no dia seguinte, mas sem contar a ninguém, para a “desencantar”, dando-lhe um beijo. De volta ao local no dia seguinte, em vez da mulher esplendorosa encontra uma serpente. Assustado recusa beijar a serpente, perdendo assim o tesouro. A sua perenidade é o objectivo último do mito.
É crença popular que esses seres femininos, as ”mouras”, se podem transformar em serpentes, razão que explica o facto de a gruta do Bando dos Santos ser conhecida por dois nomes: Buraca de Serpe e Buraca da Moura.

O romano Rúfio Avieno, no poema “Ora Marítima” (séc IV dC) que tem como base os escritos de um navegador grego do séc VI aC, ao descrever os povos que viviam na costa atlântica da Península Ibérica, refere a tribo dos Sefes (do grego sêpe, “serpente venenosa”) possivelmente localizada num território a norte do rio Tejo chamada de “Ofiússa” (terra de serpentes). Essa região seria anteriormente habitada pelos Estrímnios que teriam sido expulsos por uma invasão de serpentes. Essa expulsão não teria sido motivada por ofídios mas sim pela movimentação de um povo, os Sefes, que teriam na serpente o seu animal totémico.
Muitas têm sido as explicações para esta Moura associada à serpente, que não sendo o feminino de Mouro e não tendo qualquer relação com os mouros que em 711 invadiram a Península Ibérica ocupando-a por cinco séculos, terá uma origem muito anterior, mediterrânica, provavelmente fenícia ou púnica, referência à terra-mãe em associação com a serpente, ambas mutantes e eternas, símbolos de civilizações matriarcais.
A serpente esteve sempre muito presente na nossa mitologia rural como divindade do invisível, sub-real e, porque muda de pele, vista como gozando de imortalidade tal como a Lua que muda de fases, desaparece e renasce, ou o Espírito da Terra que, pelo ciclo das estações, se regenera automática e eternamente.
Sabemos que estes topónimos, de origem oral muito antiga foram utilizados pelas populações locais e pelas comunidades próximas, transmitiram-se e alteram-se pela oralidade, e só muito mais tarde, por necessidades institucionais de registo, é que passam a ser escritos.
O sociólogo M. Espírito Santo considerara que as várias utilizações locais de Moura, aqui entendida como Moura Encantada, por uma nova língua resultam das significações que se podem encontrar nas múltiplas variações fonéticas da palavra púnica mawrh, que significa “corpo luminoso”, das quais se apresentam alguns dos exemplos mais evidentes:
M’wrh [ maôra ] – brilhante , corpo luminoso, luzeiro, astro.
Mowrh [ mâuôra ] – cova, caverna.
Mr’h [ maroua ] – visão, aparição.
Mwr [ môre ] – muda, altera-se, transforma-se

Sabemos hoje que por migração ou conquista, a adaptação de uma população com língua própria a uma zona já nomeada, é um processo lento mas irreversível. O nome dos locais não têm correspondência entre as duas línguas, pelo que, por pressão da dominante, os antigos nomes a ela se adaptaram, não por correspondência semântica, mas por correspondência fonética com as palavras de sonoridade mais próxima, fosse qual fosse o seu significado.
Muitos dos topónimos resultam assim de adaptações, sem que haja correspondência semântica (de significado) entre os actuais e os precedentes. O nome actual não será mais do que o produto do decalque fonético do antigo nome.
No caso da Buraca da Moura ou Cova da Moura tendo Moura = Mowrh [mâuôra] já um significado de cova ou caverna resulta em duas palavras que significam a mesma coisa.
Se pensarmos em Mr’h [ maroua ] significaria cova da aparição ( da Moura encantada ); se for Mwr [ môre ] será cova da transformação ( da mulher em serpente) e se for M’wrh [ maôra ] já será cova do corpo luminoso ( mulher de grande beleza, cabelo dourado, pente de ouro ).

Os gregos utilizaram Moira (moirae), um sinónimo de Moura, como palavra que significaria sorte, destino. Estas moiras seriam depois as Parcae romanas (“Parcae”, provém de parere – gerar, dar à luz, pôr no mundo), divindades em número de três, Clotho, Lachesis e Átropos, fiandeiras que presidiam ao nascimento, vida e morte, elas próprias transposição latina das “meras” gregas – fates (origem do termo fatalidade), destino – originando na maioria das línguas latinas as fadas, tão presentes nos contos e lendas europeias.
Enquanto Clotho, a tecelã, é responsável por tecer o destino dos homens com seu fuso mágico puxando o fio da vida, a segunda, Lachesis, a medidora e a avaliadora, enrolava-o na roca registando a sua extensão e caminho, base da existência futura e determinava o momento da morte, sendo a terceira, Átropos, a que cortava com sua tesoura mágica esse fio, ao chegar a hora.
Todas são originalmente expressão da Terra-Mãe, espíritos das águas e da vegetação e os lugares das suas epifanias mostram claramente as suas origens. Com efeito, elas aparecem quase sempre nos montes, à beira de uma gruta, nas ruínas, nos inúmeros rochedos ou mesas de fada e ainda perto de uma nascente ou de uma fonte.

S. Martinho de Dume ou S. Martinho de Braga – bispo de Braga de 562 a 579 dC – considerado como o apóstolo dos suevos e responsável pela sua conversão do arianismo ao catolicismo, referia-se às mouras como mulheres-demónios expulsas do céu, no seu “De correctione rusticorum”, obra de intenção evangelizadora de grande interesse etnológico e antropológico, por fixar e descrever as práticas religiosas mais comuns entre as religiões pagãs da Galécia( Galiza).

Outra versão da lenda refere que habitou nesta gruta um dragão, serpente alada, que guardaria um tesouro, e que se alimentava dos animais que passavam por perto. A figura mitológica do dragão, pouco comum na Península, símbolo das tendências demoníacas, é muitas vezes representado, a partir do fim do séc. XII, em combate com S. Jorge, mostrando o salvamento da virgem, e ilustrando a luta perpétua do bem contra o mal.
Nas proximidades da gruta viviam uns mouros que ficaram extremamente assustados ao descobrirem tão incómoda vizinhança, pelo que, montaram uma armadilha à base de produtos inflamáveis onde o animal acabou por morrer no meio das chamas. Mas o pânico que se tinha instalado nos habitantes da região deixou marcas, e durante muito tempo ninguém se aproximava daquele lugar.
Um dia, duas mulheres, que passavam ouviram aproximar-se um surdo rastejar misturado com silvos estridentes. Aterrorizadas, as mulheres, tiveram ainda a coragem de gritar bem alto: “Valha-nos Santa Margarida”. Seguidamente, ouviram um estrondo semelhante a um trovão, seguindo-se um silêncio sepulcral. A partir de então o “encantamento” da serpe desapareceu para sempre.
Esta versão terá nascido do facto de Santa Margarida ser a padroeira da capela de Sanguinheira, povoação da freguesia do Carvoeiro, próxima do local destes acontecimentos, e ser representada dominando um dragão acorrentado, alusão ao facto de, segundo a lenda, ter sido libertada, por São Jorge, da boca do dragão. Santa Margarida de Antióquia, virgem mártir, nasceu em Antióquia, na Ásia Menor, e foi decapitada a 20 de Julho de 290 por não abjurar a sua fé cristã, no tempo em que o imperador romano Diocleciano movia perseguição aos cristãos. Conta a lenda que, quando estava presa, ao fazer o sinal da cruz, se livrou do demónio que, sob a forma de dragão rodeado de serpentes, ameaçava devorá-la. Santa Margarida foi incluída entre os "catorze santos auxiliadores", aos quais o povo cristão apela nos momentos mais difíceis, como é o caso da lenda referida.

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